Certa vez o cineasta sueco Ingmar Bergman respondendo uma pergunta sobre possível influência do filme nos espectadores no âmbito psicológico ou moral, respondeu:
“Se eu consigo obter o silencio da plateia, um minuto depois de começar o filme, se os espectadores voltam para casa mas discutem o filme durante cinco minutos, comendo um sanduiche, antes de deitar, se alguém se lembra de uma cena do filme, se ele está contente ou se cai em lágrimas subitamente, se cai na gargalhada, se sente bem, se sente mal, digamos que as pessoas foram influenciadas de uma maneira ou outra, bem o cinema cumpriu sua função. Antes de ver o filme, já tinha ouvido a trilha sonora de CORINGA e isso me estimulou ainda mais em conferir onde foram inseridas as soluções musicais de Hildur Guonadóttir para essa produção. Acompanhando a trajetória de Hildur desde os tempos da sua parceria com Jóhann Jóhannsson, já era um prenúncio de que a partir de um dado momento, ela empreenderia uma carreira solo. A trilha sonora de Hildur para o filme MARIA MADALENA serviu para mostrar o seu rápido amadurecimento quando o assunto era trilha sonora para o cinema. Ao receber antecipadamente o roteiro do filme e produzir as primeiras músicas para a trilha sonora, isso permitiu que Hildur pudesse estar mais afinada com o que o próprio diretor Todd Phillips pretendia para CORINGA. Phillips repetiu o que fez Sergio Leone com a música de Ennio Morricone para ERA UMA VEZ NA AMÉRICA, com a trilha de CORINGA sendo ouvida no set de filmagens e desta maneira os atores podiam se abastecer de emoções antes de se rodar as cenas. Por exemplo a cena em que Arthur dança no banheiro, foi fundamental o ator ter ouvido a música no set de filmagem para poder desempenhar de forma fiel o que seu corpo sentia embalado pela trilha. Bob Lane e Bill Finger, os criadores de Batman nunca haviam revelado uma preocupação individual com o personagem Coringa e nunca fizeram questão de contar a sua história. Assim sendo, a originalidade do filme parte justamente dessa história a ser contada, pois o personagem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) , o Coringa, é o narrador oficial dos fatos. A ambientação da cidade fictícia de Gotham City é dos anos cinquenta. Nessa época surgia a televisão com força total, derrubando parte da audiência do rádio, mas iniciando uma característica de programação que ao mesmo tempo em que era entretenimento também não perdia a oportunidade de explorar a tragédia humana. O roteiro que também foi assinado pelo diretor Todd Phillips foi muito bem estruturado, aproveitando para explorar temas que se mostram cada vez mais atuais como corrupção, violência e descaso para políticas públicas como da área da saúde. O reflexo desse conjunto de problemas, acionam o gatilho entre a tênue fronteira entre o traço e o estado de uma personalidade. Nesse amplo painel social emerge então a trilha sonora de Hildur Guonadóttir. Não sou musicólogo, mas trilhólogo e nessa condição cabe-me perceber até que ponto a trilha sonora exerce um papel de mero acompanhamento ou se auxilia o diretor a contar a história, reforçando as cenas. Na parte não original da trilha, foram inseridas várias canções de época, cujas letras guardam relação com a história contada. Por exemplo, a música de Chaplin Smile ganhou uma letra justamente em 1954 através da dupla John Turner e Geoffrey Parsons e a letra se aplica ao personagem Arthur quando diz :”sorria, embora seu coração esteja doendo!” No repertório de músicas não originais que integram a trilha sonora do filme, um destaque para a faixa “ Rooftod”, que foi composta por Hildur Guonadóttir e Jóhann Jóhannsson para o filme MARIA MADALENA e que entra na trilha de CORINGA.
A trilha sonora de Hildur Guonadóttir para o filme CORINGA assume uma condição de funcionalidade a partir de uma combinação de notas estimulada pela sensibilidade da compositora islandesa. A música de Hildur Guonadóttir penetra nos porões da mente do personagem Coringa, evidenciando uma fronteira musical que tem relação entre a racionalidade e a loucura das ações perpetradas pelo personagem Arthur. O relacionamento das notas assume uma dinâmica perfeitamente adequada a tensão proporcionada pelas cenas. A estética utilizada por Hildur Guonadóttir se molda perfeitamente nas cenas, com uma combinação magistral das notas. Podemos perceber o quanto a música de Hildur contribui através dos ritmos e timbres cumprindo uma funcionalidade absoluta no contexto da narrativa cinematográfica. O violoncelo de Hildur, escorado por uma orquestra de 100 elementos, com um realce da percussão que assume um protagonismo capaz de dividir equitativamente os méritos com as cenas, penetrando no DNA do filme. O filme CORINGA cumpriu sua função quanto a despertar aquilo que Bergman cunhou em sua frase.