O cineasta Akira Kurosawa morreu no dia 06 de setembro de 1998 aos 88 anos, mas sua obra está mais viva do que nunca. Kurosawa realizou 30 filmes ao longo de sua carreira de meio século a serviço do cinema. Em cada um deles, podemos notar que nunca a música se estranhou com a cena, numa demonstração que as duas partes do filme, a visual e sonora, sempre conviveram de forma harmoniosa.
Em SUGATA, filme de 1945, temos uma trilha sonora marcial, como a marcar a presença do judô, um esporte nacional. Este filme teria uma espécie de sequência em 1945, com a música de Seichi Suzuki.
A MAIS BELA, de 1944: nesse filme a música assume um papel próprio de um estilo da narrativa de documentário. As músicas da primeira fase da filmografia de Kurosawa eram híbridas, meio nacionalistas e marcadas por andamentos, que muitas vezes invocavam o Japão imperialista. A partir de 1948, por ocasião do filme O ANJO EMBRIAGADO, começa uma bem sucedida parceria entre Kurosawa e o compositor Fumyo Hayasaka. Aliás, vale ressaltar que Hayasaka sempre soube imprimir um peso mais melódico e funcional em suas músicas. Em DUELO SILENCIOSO, de 1949, a música começa a assumir um papel importante no contexto dramático do filme, num trabalho de Akira Ifukube.
Em CÃO DANADO, Fumio Hayasaka reassume a parte musical dos filmes de Kurosawa, onde vamos encontrar uma música elaborada com muito esmero. Em ESCANDALO, a música desempenha um papel alegórico, entrando na pele dos personagens, um desafio interessante integrando som e música. Como exemplo, a música que sai a partir do barulho do cano de escapamento de uma moto.
Uma das trilhas mais belas de Hayasaka para Kurosawa foi para o filme RASHOMON. Existe uma cena onde uma mulher ouve um bolero, sendo que a edição desta cena foi extremamente comovente. Kurosawa e Hayasaka editando o material percebiam que o tempo da música não se encaixava na cena. Muitas vezes a música parecia atrasada em comparação com a cena, tudo foi feito num clima de muito nervosismo e expectativa, até que de repente, música e cena seguem juntas, superando até a própria expectativa do diretor e compositor.
Em O IDIOTA, de 1953, baseado no romance de Dostoievski, Hayasaka compõe uma música num filme que acabou criticado pelo desempenho dos atores e Kurosawa por não querer adulterar a obra original.
VIVER, de 1952: o filme é uma resposta a uma pergunta sobre o que faria um homem que tem apenas um ano e meio de vida pela frente. A música de Hayasaka tem contrapontos interessantes, contrastando com uma atmosfera lúgubre, que tem no cenário um homem acometido pelo câncer. O filme VIVERrepresenta uma concepção de vanguarda do pensamento existencialista dentro da linguagem cinematográfica.
OS SETE SAMURAIS éum filme épico, onde a música é subdividida em três partes: o rufar dos tambores representa os bandidos, e a música folclórica é associada às imagens dos camponeses, com o aproveitamento da flauta e percussão. Finalmente a música dos samurais é representada por uma espécie de cantarolar baixo, através de um coro masculino. A música tema é triunfal com toques de cornetas, o que torna a trilha de OS SETE SAMURAIS, rigorosamente distinta, música de Hayasaka.
CRONICA DE UM SER VIVO, de 1955: durante as filmagens morre o compositor Hayasaka, com isso Masaro Sato é contratado para terminar o trabalho iniciado. Quando da morte de Hayasaka, o cineasta Akira Kurosawa sintetizou numa frase como era o relacionamento dos dois: “Ele era soberbo, trabalhávamos tão bem juntos porque as fraquezas de um eram os pontos fortes do outro. Era como se ele, com seus óculos, fosse cego, e eu fosse surdo”. Essa parceria entre Kurosawa e Hayasaka durou exatamente cinco anos. Quanto a Masaro Sato, que assumiu a música de CRONICA DE UM SER VIVO,pudemos perceber, nitidamente, uma mudança de estilos. Trocando em miúdos, se Hayasaka fazia uma música nitidamente oriental, já Sato foi o mais europeu de todos os compositores japoneses.
Bem, quando havia necessidade de ser oriental, Sato era capaz de adequar-se ao estilo pedido pelo filme, como em TRONO MANCHADO DE SANGUE. Aliás, este foi um filme tipicamente shakespeariano, com tomadas de cenas magistrais, como no início do filme, mostrando as ruínas de um castelo, enormes colunas de pedra e uma atmosfera envolta em neblina. Nesse cenário, a música de Masaro Sato assume um caráter alegórico e funcional, como a flauta do personagem Nô.
Em RALÉ, de 1957, Kurosawa transforma em filme a peça de Gorki. Sato compõe uma espécie de rap, um ritmo que se adequava perfeitamente ao que pedia a cena. Em FORTALEZA ESCONDIDA, a música de Masaro Sato é apoteótica, já a partir da marcha inicial. Em seguida, ela prende-se às cenas e passa a desempenhar um papel importante em conceituar o filme como épico, mas não dentro do padrão convencional japonês. Vai muito além ao romper com esse modelo e com isso a música é muito bem aproveitada.
O HOMEM MAU DORME BEM, de 1960: novamente time que está ganhando não se mexe - a mesma equipe, o mesmo compositor Masaro Sato, compondo a trilha sonora. Desta feita, Sato cita até Mendelssohn, quando de repente a música rompe de forma latejante com uma clarineta metálica e torna-se suave para fechar a sequência de três minutos de uma montagem magistral de Kurosawa.
YOJIMBO, 1961, poderia perfeitamente ser considerado como um westernjaponês. A própria cidade palco das emoções, lembra bem os westernsamericanos. A música de Sato serve para permear o clima de intensa emoção. Sato compôs uma trilha de acompanhamento que ilustra muito bem quadro a quadro o filme.
Em 1962 o cineasta Kurosawa filma SANJURO, um herói criado para pegar uma carona no sucesso de YOJIMBO. A música de Masaro Sato assume feições de sátira. Na realidade o objetivo da música é temperar o clima provocado entre o encontro de samurais mirins e um verdadeiro samurai. Todos esses contrastes são pontuados pela música.
Em CEU E INFERNO, de 1963, como o próprio nome revela, trata-se de um tema dos opostos. A primeira metade do filme é no céu, Sato entoa uma música celestial com acordes de trompas. Sato sugere ainda música de cena, quando num rádio ouve-se a canção napolitana “O Sole Mio”. Na segunda parte do filme, o inferno, com Sato utilizando-se de um sax como que a sugerir o profano, junto com um trompete com surdina, tudo na medida certa.
Em 1965, temos BARBA RUIVA, filme que marca o encerramento de um ciclo de 10 anos de parceria entre o cineasta Kurosawa e o compositor Masaro Sato. O filme levou quase dois anos para ser concluído. É o trabalho mais sinfônico de Sato, em alguns momentos lembrando Tchaikovsky e em outros Beethoven, o que vale mesmo é a veia erudita do compositor.
DODESKADEN, filme de 1970, inaugura a primeira e mais feliz participação do compositor Toru Takemitsu. A música irradia a doçura do personagem Dodeskaden, sem aquela preocupação de permear o filme com acordes que sugerissem uma tonalidade pesada para enfocar os temas dor e sofrimento. DERSU UZALA, filme de 1975: o primeiro depois da tentativa de suicídio de Kurosawa. O fracasso comercial de Dodeskaden, aliado ao fato de não conseguir financiamento para seus filmes, tudo isso culminou na tentativa de suicídio de Kurosawa. Para filmar DERSU UZALA, ele vai para a Sibéria e entrega a trilha sonora do filme para Isaac Schwalz, que produz uma música essencialmente russa.
KAGEMUSHA, filme de 1980 com efeitos especiais de George Lucas e a trilha sonora de Shinichiro Ikebe, que parte para uma música mais tradicionalista, totalmente marginal, onde até um oboé é usado para simular o apito de um trem.
Em 1985 Kurosawa filma RAN, com o retorno de Toru Takemitsu que se submete inteiramente à vontade do diretor e acaba deixando a música num plano marginal. Os acordes se restringiam apenas a pontuar e sustentar determinadas cenas. SONHOS, filme de 1990, com Shinichiro Ikebe retornando a trabalhar com Kurosawa, mostrando-se obediente e contentando-se em compor estritamente o necessário. Mesmo com uma trilha discreta, Ikebe não deixa de mostrar uma certa influência de Mahler sobre a sua música. RAPSÓDIA DE AGOSTO, novamente Shinichiro Ikebe é o responsável pela música que tem a funcionalidade de cumprir um papel, tal e qual de uma cantiga de rodas.
Finalmente, o último trabalho de Kurosawa para o filme MADADAYO, com novamente Ikebe ficando responsável por uma trilha que temperava as reuniões na casa do mestre e que fecha o filme com uma música vivaldiana. Nem o arrepio gelado descendo pela espinha quando montava RASHOMON fez Kurosawa reconhecer que a música poderia merecer um melhor aproveitamento em seus filmes. Para Kurosawa, a música poderia até atrapalhar em determinadas cenas, bem por isso o aproveitamento da trilha sonora era extremamente comedido. De qualquer maneira as grandes referências musicais da filmografia de Kurosawa ficam por conta dos trabalhos de Fumyo Hayasaka e Masaro Sato.